índia
Durante minha viagem, imergi com certa intensidade e curiosidade em torno da cultura indiana. Nesse percurso, meus locais de maior permanência foram Varanasi e Bikaner. Varanasi é considerada a cidade mais sagrada pelo hinduísmo, localizada às margens do Rio Ganges, que está totalmente integrado ao cotidiano da população: é fonte de água, via de transporte, objeto de veneração e rituais. A relação da população com o rio é muito forte. A vida e a morte encontram na cidade uma significante referência. A cidade de Bikaner é um local interiorano e menos frequentada por turistas, com clima acentuadamente árido e altas temperaturas. A parte antiga da cidade é formada por vielas labirínticas por onde os moradores caminham habilidosamente por entre carros e motocicletas. Deslocava-me pelas cidades em viagens de trem que duravam doze horas ou mais. Os percursos possibilitaram uma percepção minuciosa sobre a relação da população local com o cuidado e proteção aos animais. Fora dos grandes centros, o trabalho braçal ainda é predominante. Cores, temperos e cheiros diversos exalados pelas ruas ornam as pessoas que, apesar de grande parte delas terem condições sociais e econômicas desfavoráveis, são muito alegres, hospitaleiras e intimamente conectadas às devoções religiosas. A proposta de fracionar o ensaio por séries com predominâncias cromáticas é uma alusão à tentativa de desmistificar a Índia estereotipada, vista por boa parte do ocidente como uma luz única, revelando os diversos espectros de cor, que formam um país plural, com um significante sincretismo de realidades. Não pretendo impor uma verdade única, mas, sim, mostrar um recorte do meu olhar sobre essa experiência vivenciada. Encontrar cenas quase monocromáticas era uma tarefa de paciência, foco e observação. Mediante a contemplação do Rio Ganges, estive na tentativa constante de encontrar calmaria através da imensidão e a beleza do Rio e seu entorno. Recortes de tranquilidade em meio ao caos. Nesse ensaio, não há dissociação entre caos e cosmos: há uma mistura que dialoga de forma direta e pacífica.
séries: afluente âmbar, raíz da terra e azul-imensidão
âmbar de sol, de fogo, de luz, de açafrão _ misturado com a pele, com os ritos
verde da terra arada e cultivada por mulheres em panos coloridos,
azul imenso que acalma a mistura de todas as cores no cair da noite
são/tem tantas cores que quase poderia ser separada por tons
são tantos ritos que se misturam e se dividem com as cores
que quase fica impossível não mergulhar
mergulha em ritos emerge em rios
rios que transportam que abastecem que lavam
a roupa o corpo
e a alma
um ciclo completo:
sedução de cores quentes,
fertilidade de cores frescas,
morte do escuro
e renovação no azul.
Índia.
(FERNANDA RENNÓ)
série entre tons e contrastes fluviais
Índia de todas as cores
de linhas de fios, de linhas de roupas, de linhas de árvores
de espaços divididos entre seres, quais sejam
de divisão entre tecnologia e tradição
de luz e de escuro
de preto e de branco
de abundancia de demanda nos ares
e de oferta na terra e nas águas
igualmente demandadas
nem tudo é preto nem tudo é branco
mas a contradição e os contrastes direcionam o olhar exógeno
dramatizam os olhares internos
Índia de todas as cores
de mistura de todas as cores – branco
de ausência de todas as cores – preto
(FERNANDA RENNÓ)
toda fotografia é uma ficção
Muito se fala da ficção literária, mas pouco se discute sobre a ficção fotográfica. Desde o seu surgimento há quase dois séculos, a fotografia esteve intimamente atrelada ao mundo real, como um espelho capaz de refletir aquilo que é visível. Mesmo aceitando a pose ou o fato de que situações pudessem ser simuladas, pouco se questionou sobre essa relação natural da fotografia com a realidade, pois só o que existe pode ser fotografado. Foi preciso que a tecnologia digital avançasse e substituísse definitivamente a película fotográfica para que tal estatuto fosse alterado. Historicamente, a dualidade da imagem fotográfica (verdade ou ficção) sempre inquietou pensadores e teóricos da imagem, divididos entre as possibilidades de um registro documental factual (evidentemente mediado pelo posicionamento ideológico do fotógrafo) e a criação de outras realidades advindas da representação tecnológica, supostamente isenta e diversa daquela realizada pela mão do artista. A linha que divide esses dois territórios pode ser extremamente tênue, como observamos nas fotografias de Pedro Mendes. Trata-se de um mundo real, mas não é o mundo real. Suas fotografias (re)criam um universo paralelo baseado no conhecimento que temos do mundo, e é dessa relação que advém a força da fotografia como estatuto representativo do real. O que estamos vendo existiu, estava lá, mas foi preciso um olhar poético para que uma outra realidade se apresentasse. Ao reconhecer as estruturas visuais que se parecem com a paisagem, com as casas, as cidades e seus personagens, temos a ilusão de que tudo isso é real. Digo personagens, pois as pessoas aqui retratadas, despem-se de sua individualidade para assumirem o papel simbólico que o artista lhes atribuiu. Contribui para isso os demais elementos da cena, banhada por uma luz de indisfarçável monocromatismo, que no entanto, não se pretende absoluto. Somos tocados pela atmosfera capturada pelas lentes subjetivas de Pedro Mendes, pelo silêncio respeitoso de seu olhar viajante, que encontra mas não toca, que descobre mas não revela, permitindo-se no entanto, imaginar. Partindo para uma jornada de busca interior, o artista-poeta-fotógrafo retorna e generosamente nos apresenta sua percepção sutil e afetiva de um mundo possível, ficcional, que corre em paralelo, tornando a nossa realidade apenas uma entre as tantas possíveis.
Tibério França
curador